1.
Machuquei minha mão. Mais especificamente a falange distal do dedo médio. Foi uma cena aterrorizante, épica e cômica, como costuma ser a maioria desses pequenos acidentes domésticos. Tudo começou quando David derrapou no livro sobre a mesa rodopiando no ar feito a cena kubrickiana do osso sendo lançado por um primata para cima, transformando-se em uma nave, e nesse caso sendo todo o peso de um gato caindo diretamente na extremidade da minha mão, entortando meus dedos e reverberando um choque de dor que percorreu rapidamente o caminho até meu cérebro fazendo eu me sentir em alguma série policial na qual, no ápice da tragédia, os neurônios se conectam juntando toda uma rede de pensamentos na resolução notória de um crime.
2.
O livro em questão era “The Carrier Bag Theory of Fiction”, da Ursula K. Le Guin, de 1986. Sete páginas que recontam a humanidade ao redefinir a importância de sua principal tecnologia. Não mais o foco em dominar e matar - osso, machado, espada -, mas para o guardar e se movimentar - cesta, bolsa, mochila. Lembram as duas páginas de “The Anthropocene”, de Paul Crutzen e Eugene Stoermer, publicada em 2000, que propõem uma nomeação para os impactos destrutivos que causam as mudanças climáticas, reconhecendo o período mais recente na história geológica da Terra como Antropoceno.
“Before the tool that forces energy outward, we made the tool that brings energy home.” - Ursula K. Le Guin
Esse outro modo de pensar a narrativa e escrever proposto por Le Guin é também uma proposta de viver outros modos. É reconhecer as relações em suas trocas constantes, e não apenas como presa e predador, ainda que chamemos ações extrativistas de predatórias, um predador existe em equilíbrio com seu ecossistema. É preciso sempre rever as narrativas, procurar as origens. Existe, muitas vezes, uma procura do futuro na ficção científica. Por vezes, um futuro ainda extrativista e colonizador: a procura por outros planetas e seus recursos. Mas, já dizia Le Guin, a ficção científica fala do presente, e podemos dizer que também do passado, já que pesquisar os nossos ancestrais, os povos originários, é reescrever um futuro possível, o único futuro possível.
Esse texto é uma volta ao passado, com reminiscências do presente.
3.
Esse foi o livro lido no encontro que ocorreu logo antes de eu entrar no ADA (Atlas do Antropoceno), grupo de estudos liderado por Natalia Borges Polesso. Foi o primeiro jeito que encontrei de voltar à PUCRS desde a defesa da minha dissertação, em 2020. Não foi uma quebra ocorrida pela pandemia, mas algo anterior. Quando me propus a escrever “Há um segundo era presente: a construção do ser feminino e a imagem da mãe natureza”, minha intenção era de refletir sobre a visão de pessoas com útero serem vistas como mulheres, as implicações como a maternidade compulsória (a heterossexualidade igualmente compulsória), a concepção da natureza como mulher, e a consequente visão extrativista, de enxergar os sujeitos, seja água, pedra, animal ou vegetal, como recursos a serem explorados, como mercadoria. Em vez disso, me deparei com uma constante de perguntas sendo lançadas como se fossem obrigação máxima minha respondê-las, e que eu não tinha interesse e muito menos eram o foco da minha pesquisa: porque você está escrevendo um romance contemporâneo? Porque uma mulher rejeitaria sua natureza? Porque você acha que sua visão de mulher branca importa ao mundo? Enquanto isso eu estava me perguntando se eu era mesmo uma mulher. Muitas dessas perguntas continham em si mesmas equívocos: se mulheres escrevem sobre maternidade, não é exatamente porque a maternidade é algo inerente de pessoas vistas como mulheres, mas por diversas outras razões, sendo uma dessas a de que esse é justamente um assunto imposto. Eu não tinha como abarcar todas as vivências de mulheres em um único romance, ainda que tivesse três personagens principais, e ainda que era a minha primeira tentativa de escrever uma prosa longa, e eu queria justamente falar sobre isso: que cada pessoa considerada mulher tinha sua própria vivência e visão de mundo, e o próprio encontro dessas visões geram conflitos complexos. É cansativo, mas é preciso reiterar que ser mulher não é uma única coisa. E nem mesmo uma coisa, algo a ser usado e descartado. Tive a sorte de ter um orientador da filosofia, que me ajudou a navegar textos de Paul B. Preciado, Virginie Despentes, Simone de Beauvoir, Foucault, Spinoza, bell hooks (…) e colegas que me apresentaram Bruno Latour, Daniel Braga Lourenço, Pablo Solón, Ailton Krenak, e mais uma ecologia de autores. Na época, fiz o que pude (mesmo com bolsa, era preciso se sustentar) e não consegui dar conta das leituras, muitas delas sem tradução alguma, e acabei tentando responder ao que me perguntavam. A verdade é que desconsidero a versão final. Decidi parar pela primeira vez com minha vida acadêmica desde 2012, quando entrei na minha primeira graduação, e não continuei para o doutorado. A verdade é que, muitas vezes, é preciso sair do meio acadêmico para se fazer a pesquisa que se quer. E foi a melhor decisão que já tomei. Em março de 2020, após terminar minha defesa, no momento que apaguei a câmera e fiquei diante da tela que me refletia, disse em voz alta, unicamente para mim: “Estou livre”. Desde então, nunca mais toquei na minha dissertação. Em vez disso, parti direto para novas escritas, uma volta pela voz lá do início, que ficou soterrada.
4.
No mestrado, senti que me analisavam em todos os mínimos detalhes. E nem sempre os importantes. Uma das propostas da dissertação é manter um diário de escrita com reflexões sobre a criação do romance. Vindo de uma escrita focada nos detalhes, me perguntava: mas o que é tão importante na criação de um romance que mereça ser registrado? Meu romance não tem a capacidade de falar por si? Eu não deveria passar mais tempo escrevendo o romance do que escrevendo sobre escrever sobre ele? Eu me vi deslizando na espiral da loucura formulando cada vez mais perguntas que, mais uma vez, não eram o meu foco. Me senti tão observada que comecei a me perguntar se não queriam mesmo é me consumir pelas minhas dores e traumas, e de que a curiosidade diante da vida de quem escreve pode se tornar um tanto perversa. E é tão curiosa a memória, pois eu só fui me lembrar desses detalhes ao escrever esse texto. Lembro de passar muito tempo deitada, virada para a parede, observando a textura da tinta, pensando se existia uma forma perfeita de descrever aquele relevo microscópico, de como seria se eu pudesse ser pequena o suficiente para caminhar por aquele terreno montanhoso, subindo e descendo e desviando… E essas minúcias passaram a estar presentes na minha escrita, mas de um modo desfigurado: minhas cenas se tornavam tão extensas que não tinham fim, pois tudo precisava ser descrito, cada movimento, cada aspecto, cada cenário. Tudo parecia infinitamente importante, então nada era importante. Folheava todos os livros sem saber quais frases marcar. Até que uma imagem me chamou a atenção: a comparação de um útero e as trompas de Falópio com a cabeça de um touro. Voltou-me, então, uma proto-ideia de que “figuras hoje vistas como masculinas, como o touro, podem ter tido outros significados, uma ligação do masculino e feminino como forças não antagônicas”. Voltei a enxergar essa outra linguagem que permite que as figuras se ampliem, mesmo que usando as mesmas palavras. Algo entre a busca pelo novo vocabulário a ser elaborado, não marcado pela bifurcação, e a transformação linguística. Daí surgem trechos da dissertação que reconheço como minha:
[17 de abril de 2019]
Vejo hoje Cave of Forgotten Dreams (2010), de Werner Herzog. O documentário mostra a rara chance em que a equipe do filme conseguiu de explorar e documentar o interior das Cavernas de Chauvet (França), local no qual encontram-se as pinturas mais antigas feitas por humanos, com desenhos que datam de 30 mil anos, assim como o depoimento de pesquisadores e suas impressões. Como expectadora, sinto-me dentro dessas descobertas, sendo a primeira a identificação de uma assinatura através da marca repetida de uma mão que detém uma singularidade: um dos dedos é torto. Autorias desconhecidas nos aproximam do sentimento de pertencer a um conjunto humano? A assinatura individual por vezes parece distanciar a arte do humano. Nesse sentido, a arte sem nome e sobrenome não se torna algo que o humano faz, em vez de ser o dom de poucos? Saio a tatear as paredes brancas do meu quarto. Minha mão é do tamanho de uma folha da minha agenda. Minha mão é do tamanho de uma folha do meu diário. Minha mão é do tamanho de uma folha do meu caderno. Uma lembrança ressurge: quando ainda desconhecia meu nome, assino um painel de pintura com minha mão.
Outra descoberta: cientistas afirmam que a pintura mais antiga, a primeira, foi feita por uma mulher. Mais uma: a única figura humana na caverna se enxerga apenas uma parte devido a sua localização distante do alcance da câmera. Nesse momento, Herzog monta uma grua improvisada e mostra que se trata da imagem de uma mulher com traços de uma vaca (ou animal semelhante que possui chifres).
5.
Eu era estudante da primeira turma de graduação em Escrita Criativa da PUCRS e, caminhando pelos corredores à procura de anúncios de bolsas, me deparei com um cartaz que convidava para participar do concurso de poesia Fale(m) Versos. Estava naqueles piores dias de cólica em que a vontade é de arrancar o útero com as mãos. Fui pra casa, me sentei diante do computador e fiquei as próximas cinco horas digitando e experimentando até chegar no meu primeiro poema. Eu medi cada espaço dele até ficar satisfeita, enviei e logo me esqueci dele. Marquei um encontro para o mesmo dia do concurso, e em algum momento me lembrei de ir (ou foi a pessoa que me lembrou, o mais provável). Na hora, era necessário não apenas ler, mas fazer uma performance do texto. Cheguei descompromissada, um pouco bêbada, me entreti observando a leitura dos outros, subi leve no palco, pedi para que apenas as mulheres da plateia levantassem o punho e li o poema:
Recebi uma salva de aplausos, conversei com os jurados (uma espécie de paródia muito divertida do reality America's Got Talent, com Simon Cowell e tudo), e me preparei pra ir embora quando anunciaram meu nome como ganhadora. Subi de volta no palco e ganhei um troféu, que guardo com muito carinho, e um exemplar da edição da TAG livros de Vitória, romance do Joseph Conrad, junto de algum comentário sobre o destino do título ser meu nome. A capa tem uma ilustração em aquarela daquele tipo de pôr do sol multicolorido que vez ou outra encontra-se em textos (inclusive nos meus) uma tentativa de descrição, mas que poucas dão conta do encantamento presente em uma imagem dessas. É um detalhe que sempre reparo. Acho que se encantar com um pôr do sol é uma poucas sensações que se possa dizer universal. E por isso mesmo pode ser algo tão difícil de se descrever. Apesar de raro, em um mesmo livro destaquei dois trechos. São de Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias, de Flannery O'Connor. O primeiro é do conto Um Templo do Espírito Santo: “O sol baixava e o céu tomava uma coloração violácea de hematoma que era bem compatível com a melosa e pungente evolução da toada”. O segundo é do conto Um Círculo no Fogo: “O sol ardia tão rápido que parecia empenhar-se por colocar tudo em fogo”. E que curiosa a memória. Apesar de Porto Alegre ser uma capital conhecida por seu pôr do sol no Guaíba, até então nunca tinha reparado nessa informação. Eu sempre reparei nas descrições dos livros, mas nunca saí de casa para ir até a orla, que é perto de casa, só para isso. Nem sei dizer se em algum momento da minha vida eu vi o tal pôr do sol do Guaíba. Não sei se agora quero ver. Não gosto mais de chegar perto dali. Até parei de registrar fotos de Porto Alegre. Falando nisso, aquela foi a única edição do Fale(m) Versos sem um fotógrafo. A falta ou a perda de registros é uma constante em minha vida. Nunca mais fui tão livre com a escrita quanto esse dia.
6.
“Você sabia que musaranho é o menor mamífero do mundo? E que, para se manter vivo, seu coração precisa bater 1200 vezes por minuto, quase doze vezes mais rápido que o do ser humano?”. Sou uma criança aficcionada por folhear revistinhas em busca de fatos super interessantes e seções de “você sabia que”. Meu vô caminha na frente, para ao lado de uma árvore, aponta e pergunta: “Qual é essa?”. Eu respondo: “Essa… não sei”. Então ele pede que eu me aproxime, me levanta no colo e fala que devo observar mais de perto. A folha é tão comum, tão verde quanto as outras. Viro minha cabeça de lado. Elas parecem recortadas em ondinhas como as finalizações das toalhas bordadas pela vó. “É uma chal-chal”, ele responde. Eu penso que o cachorro de língua azulada nada tem a ver com essa árvore quando um vulto se apossa da minha visão. Eu preparo um soco com a mão direita, mas desisto ao reparar que é um passarinho. “Esse é um bem-te-vi”, eu digo. Penso que curioso ter o nome da interpretação que uma espécie fez de algo que você está tentando dizer. “Vitória”, meu vô me chama. Ele levanta parte da folhagem e me mostra pequenas frutinhas vermelhas. Eu hesito. Ele começa a catar algumas e me entrega. Só consigo segurar duas por vez. Ele come uma. Eu hesito. Acho todas essas frutinhas amargas. Observo de perto e ela é vermelha como todas as outras, inclusive as que ele disse que não posso comer. Eu disfarço e jogo elas para perto de um dos pássaros no chão à volta, como se tentasse alimentá-lo. Meu vô ri, e me entrega mais duas. Então me larga no chão e vai catar mais algumas para levar. Eu fico observando os bem-te-vis. Eu realmente quero entender o que eles estão dizendo. Meu vô me dá a mão e voltamos a caminhar. Margeamos o Rio Taquari. Ele aponta para as águas e me explica que elas afluem até o Rio Jacuí e que se juntam com outras até desaguarem no Guaíba, chegando em Porto Alegre, onde está minha mãe. O caminho de um rio não me causa muito interesse e me distraio com o rasante dos passarinhos. Os bem-te-vis estão agitados. Eu peço para meu vô que quero voltar para casa. Ele responde que já estamos fazendo isso. Pela primeira vez, o calor do sol me irrita. Os bem-te-vis. Eu realmente quero entender o que eles estão dizendo.
7.
Das minhas primeiras memórias oníricas, há um conjunto que se repete. Em uma delas, estou caminhando por uma estreita, retilínea e infindável faixa de areia cercada pelo oceano por ambos os lados, que avança aos poucos, até engolir toda a superfície, e é preciso nadar para encontrar terra firme enquanto sou perseguida por uma sombra que serpenteia abaixo d’água. Em outra, estou em Capão da Canoa, quando o mar começa a avançar até tomar toda a praia, e continua apoderando-se pelas ruas, mas ninguém mais se importa com a situação a não ser eu. Em mais uma, estou sozinha em uma casa de madeira na Praia do Maço, no Vale da Utopia em Palhoça, e a chegada de uma tempestade faz as ondas subirem num arroubo e entrarem pelas janelas. Na terceira noite da enchente, quando finalmente consegui dormir, sonhei com a repetição da imagem do mapa da cidade de Porto Alegre em um zoom out que abarcava toda a região da Lagoa dos Patos, se afastando em direção a imensidão do Oceano Atlântico, mostrando a imensidão da água diante daquele pequeno ponto em que eu dormia. Talvez a vontade de ser uma turritopsis nutricula não esteja relacionada com viver para sempre, mas sobreviver a desastres, sobreviver ao meu mais profundo medo: morrer afogada. A vivência da enchente foi sentir no corpo cada centímetro das águas do Guaíba avançando contra o muro da Mauá; perceber, pelos milímetros, a pequenez; entender que só se sabe realmente de algo quando se vive aquilo, que há um limite para a empatia; que aquela ideia do imaginário da água, de só estar totalmente em contato quando submerso, é terrível. Por fim, o quanto a geografia se torna real durante uma enchente.
8.
Se antes já me invisibilizavam como mulher, vocês têm que ver agora que falo sobre não-binariedade. Quando vi meu nome na lista de aprovação para a pós em Escrita Criativa, percebi que, até no doutorado, só haviam passado mulheres. Apesar disso, todos os professores e orientadores disponíveis da área eram homens. Numa conversa com as colegas, surgiu a ideia de criar um espaço seguro de discussões sem a presença de homens cis, e assim criamos o evento, que nomeei de Mulheres com a Palavra. Apesar da primeira edição ter sido incrível, percebi que havia algo estranho, pois a “mulher” do título parecia não ser o suficiente para nomear meu entendimento de gênero ou o que quer que eu fosse. Senti a mesma coisa depois de entregar minha dissertação. Após todo o trabalho de desconstrução do que é ser mulher, me deparei com o não-binarismo (que sempre esteve ali) e foi exaustivo. Pensar em fazer tudo de novo me desanimou, me gerou uma revolta imensa, um ódio contra eu mesma. Enxerguei minha vida como uma inconstância, dentro de outra inconstância, dentro de outra inconstância, … Esse útero que não parava de se mover, e que talvez devesse ser arrancado. Pensava que o não-binarismo invalidaria todas minhas vivências anteriores, até que me deparei com Disphoria Mundi e o termo euforia de gênero. Além das movimentações internas de gênero, há a movimentação instável do corpo diante das chuvas. A vivência do gênero muda conforme o local. Longe de casa, dos meus locais seguros, sou vista como mulher, e portanto, alvo das violências patriarcais. Passar da escrita para a realidade foi um choque.
Nesse momento de catástrofe climática, a mochila se tornou meu maior pertence. É através da mochila que vivo minha casa.
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Não quero terminar essa newsletter em um tom sombrio.
Então trago um recado e links importantes.
Eu e Kali estamos com a quinta edição do curso Escrita para RPG, desconstruindo a jornada do heroi e trazendo uma abordagem decolonial pros processos criativos. Agradeço por ajudar a compartilhar.
Acredito que literatura é comunidade:
Segredo em Órbitas, da Vanessa Guedes, é a minha maior recomendação de newsletter.
Para quem quiser conhecer mais sobre Ursula K. Le Guin, recomendo os conteúdos (inclusive sua tese) escritos pela Ana Rüsche, que também escreve em anacronista.
Júlia Dantas esteve em uma mesa da flip com Atef Abu Saif:
Sigamos bem, juntos.
Linda edição 🧡