Admito. Achei que teríamos um pouco mais de tempo.
Quando passei na seleção do mestrado, em 2017, decidi voltar de São Paulo para Porto Alegre, e continuar aqui até a defesa. Foi uma decisão difícil pois já tinha combinado de morar com uma grande amiga por ali. Um dia antes de me despedir dela e morar sozinha pela primeira vez, sofremos uma tentativa de assalto a mão armada logo ao sair do lançamento de “frêmito-genitália”, livro do Pedro Dziedzinski, outro grande amigo. Lembro do cara saindo da bicicleta e mirando a arma na minha cabeça, de fingir pegar meu celular, tentando ganhar tempo, da minha amiga que saiu correndo procurar ajuda, do desespero de levarem todas as nossas documentações, dessa despedida que acabou virando o mais puro caos e horror.
Tentar viver a cidade de Porto Alegre sempre foi muito difícil.
fotografia de GABRIEL WOLKIND
Já naquela época falávamos sobre como a cidade estava há tempos abandonada pelo governo, de como apenas poucos anos antes, em 2014, foi o último momento em que sentíamos que a cidade estava viva, e de como a Cidade Baixa, bairro boêmio da cidade, era passado.
Logo que me mudei, fiz amizade com minha vizinha de porta que, como eu, era grande fã de jogos e literatura fantástica, andava de bicicleta pela cidade, e que se preocupava com as mudanças climáticas. No tempo que nos sobrava entre trabalho e estudos, nos encontrávamos para conversar sobre esses assuntos, e aos poucos avançávamos a conversa sobre o que fazer numa cidade que parecia morta. Lembro que ela me mostrou uma previsão de que, em 2030, grande parte de Porto Alegre estaria debaixo d’água. Ela, então, resolveu se mudar e fazer um mestrado na França sobre os direitos das populações que migrariam em função das mudanças climáticas. Esses assuntos perderam visibilidade quando começou a pandemia, dois dias antes da minha defesa de mestrado. O pensamento se voltou para os governos de extrema direita, a crescente alta das mortes pela Covid-19 e, incrivelmente, o negacionismo perante às mudanças climáticas começou a aumentar.
A pandemia não teve um fim catártico, anunciado. Não houve uma grande notícia que disse: acabou. Aos poucos, amigos foram indo embora. Todas as pessoas que conheço que já moraram em Porto Alegre têm o mesmo sentimento de amor e ódio pela cidade. Eu sinto isso. Desde então, muitos amigos saíram daqui. Nessas minhas idas e vindas de São Paulo, acabei visitando diversos amigos, sendo um deles o próprio Pedro, em que comentamos, mais uma vez, como Porto Alegre fica cada vez mais morta. No final do ano passado, o Rio Grande do Sul teve problemas com as chuvas e, apesar dos avisos, o governo estadual não deu a devida importância. Espantosamente aconteceu que, no início do ano, centros culturais e livrarias abriram, festivais e festas voltaram, houve um aumento de lançamentos de peças de teatro, filmes, livros, e a vida cultural teve um boom que não via há 10 anos. Parecia que Porto Alegre estava voltando. Eu voltei para meus estudos na PUCRS através do ADA (Atlas do Antropoceno). Retomei a escrita de romances que havia deixado na época, artigos e outras pesquisas. Mas, até anteontem, grande parte das pessoas com as quais eu conversava sobre todos esses assuntos, achava tudo isso uma grande besteira. Já se sabe: grande parte só vai fazer algo com relação às mudanças climáticas quando já for um tanto tarde e a calamidade estiver literalmente na porta de casa. Existe, também, até o discurso que as pessoas do sul merecem morrer, e não são poucos os likes que concordam com essas mensagens.
No momento, estou há duas quadras da água que continua a avançar.
Minhas famílias da região de Lajeado e Canela estão ilhadas, mas seguras.
Além da catástrofe física, há a emocional, da memória.
Mas, agora, o foco é ajudar.
Onde acompanhar:
Últimas informações sobre a chuva no RS | Rádio Gaúcha
MetSul Meteorologia
Cobertura Enchente - Rádio Independente
Alertas e Avisos da Defesa Civil
Prefeitura de Porto Alegre
Como ajudar:
O governo estadual está pedindo pix, mas há uma discussão sobre o repasse de verbas, inclusive de que o governo estadual não criou projetos para a defesa civil e, por isso, não recebeu a verba disponibilizada pelo governo federal. O Deputado Matheus Gomes criou uma linha do tempo sobre isso, aqui.
Muitas pessoas falam que não é hora de falar sobre política, mas estamos nessa situação justamente por causas políticas. A melhor forma de ajudar é diretamente através de ongs, coletivos e diversas organizações sociais que estão sempre ativas na ajuda à população:
Cozinha Solidária da Azenha - MTST/RS
Rede de Bancos de Alimentos RS
Para quem estiver em Porto Alegre, aqui estão alguns locais que precisam de doações.
Peço que ajude da maneira que puder, até o compartilhamento dessas informações faz a diferença.
Querida, mando toda minha solidariedade daqui. Um abraço apertado 🧡